Meu pai que a escola excluiu
(Já faz tempo que escrevo coisas sobre educação, meu "palco" de trabalho...
São muitas as aflições.... Nele falo sobre o meu pai e seus múltiplos
saberes que a Escola desprezou. Alguns amigos já o conhecem...)
Estou
aqui me lembrando da figura do meu pai à mesa da cozinha: cabeça baixa,
concentrado, com uma agulha nas mãos e o meu cordão. Os dedos grossos
mal conseguiam acertar os furinhos da corrente. As mãos trêmulas... Mas
meu pai jamais me diria que não conseguiria.
Mãos
grossas e unhas pretas. Meu pai foi mecânico. “Médico de carros”, diz
ele toda vez que fala sobre o que se tornou quando a Escola lhe negou o
sonho de ser médico.
Meu
pai repetiu algumas vezes os anos de escola, e ao chegar à quarta série
tinha muito o que fazer fora dela. Dono de um Cicle, meu avô precisava
também dele para seguir com o trabalho. E a alegria de trabalhar com os
irmãos e o pai e de logo aprender o prazer da motocicleta e, depois, do
automóvel, não concorreu com a tristeza das notas baixas e dos
evidenciados erros de português.
Só
que alguma coisa de errado aconteceu nessa história. Foi meu pai quem
tudo me ensinou nos meus anos de estudante. Desde aprender a ler e
escrever (eu aprendi antes de entrar na escola) até as provas de
geografia, física e história. Ah, lembro-me também de que foi ele quem
me ensinou os advérbios de tempo, modo, lugar... E se foi por ele que
aprendi o malabarismo de não deixar a escola negar os meus sonhos, como
pode ele não ter chegado lá?
Eu
acredito que, como diz Victor Paro, nós aprendemos apesar da escola, e
não por causa dela. Meu pai hoje é um senhor de setenta e um anos.
Inteligente, educado, íntegro, justo, honesto. Dono de valores que não
aprendeu na escola e vejo muito pouco, hoje, a escola ensinar. Escreveu
algumas palavras de forma errada. Desrespeitou alguns sinais de
pontuação. Talvez não tenha respondido a tabuada na ponta da língua. E,
por isso, recebeu da escola o pior castigo: a exclusão. Até hoje meu pai
se lamenta de não ter seguido os estudos. Culpa-se.
Não
sabe o meu pai o quanto é superior a tantos de nós, educadores,
graduados. O quanto já era superior aos seus próprios professores. Tão
menino e profundo conhecedor das traquinagens das bicicletas,
motocicletas, automóveis. Meu pai sabe tudo: pinta, desenha, planta,
canta, constrói, cozinha, costura, conserta, dirige. E sua escola não se
curvou aos seus saberes. Muito pelo contrário: esticou-se tanto, tanto,
que ele não conseguiu alcançá-la.
Alguns dirão: “pobre desse homem”.
Pois insisto em dizer: pobre da escola de ontem que deixou nossos pais,
avós e bisavós sem aquele maldito papel que legitima o saber que ela
pensa que detém enquanto renega os muitos, tantos de seus educandos. E
infinitas vezes mais pobre da escola de hoje, que ainda o faz.
Voltando
à cena do cordão, depois de alguns minutos meu pai o entregou pra mim.
Os nós? Desfeitos, revelando mais uma de suas tão desprezadas
habilidades.
Fonte: http://kentrenostodos.blogspot.com.br/2011/12/meu-pai-que-escola-excluiu-texto-de.html?spref=fb
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