Formação profissional em Psicopedagogia: embates e desafios
Professional formation in Psychopedagogy: collisions and challenges
Elcie F. Salzano Masini
Doutora e Livre Docente
RESUMO
As
publicações sobre Psicopedagogia, em livros e revistas
especializadas, comprovam que essa área de estudos já existe há
décadas, no Brasil e na Europa. Esses anos de existência, no entanto,
não foram suficientes para uma clara delimitação do objeto e
especificidade da área. Restam, entre os próprios profissionais,
embates sobre fins, local de exercício, modalidades e recursos de
atuação e, com profissionais de outras áreas, discussões sobre os
limites de seu objeto de estudo. Em meio aos problemas de
delimitações, há concordância que a Psicopedagogia é a área que
estuda o processo de aprendizagem e seus bloqueios. Ao tratar de
aprendizagem no Século XXI - um cenário onde o homem se debate no
movimento entre o real e o virtual, submerso cada dia mais em
profusão de informações - a Psicopedagogia enfrenta um dos maiores
desafios de nossa época. Como lidar com o aprender do ser humano
neste cenário? A busca de uma resposta demanda, em primeiro lugar, a
definição precisa de seu objeto de estudos e especificidade, como
quadro referencial de delimitação dessa área. Isso requer
aprofundamento de estudos, de pesquisas e análise crítica das mesmas -
condição indispensável para discussão sobre a formação de
profissionais. Este é o tema desta comunicação.
Unitermos: Psicopedagogia, história. Competência profissional. Área de atuação professional.
SUMMARY
The
publications on Psychopedagogy, in specialized books and magazines,
show decades of existence of this field of knowledge in Brazil and
Europe. Those years of existence, nevertheless, were not enough to
establish a clear delimitation of the object and specification of the
area. There still remain, among its professionals, disagreements about
place of exercise, modalities and resources of action and
controversies with professionals of other areas about the limits of
its object of study. Despite these delimitation problems, it is
generally agreed that Psychopedagogy is the area that studies the
process of learning and its difficulties. Dealing with learning in
the XXI century - a scenario where man struggling between the real
and the virtual, overwhelmed in ever increasing superabundance of
information - the Psychopedagogy faces one of the major challenges of
our time. How to deal with the learning of human being in such
environment? The search for an answer demands first a definition of
its object of study and specification, as a referential frame that
delimits that area of study. This definition requests deepening of
studies, researches and critical analyses of those - a mandatory
condition to the discussion about preparation of professionals. That
is the subject of this paper.
Key words: Psychopedagogy, history. Professional competence. Professional practice location.
INTRODUÇÃO
A
identidade da Psicopedagogia não está ainda bem delimitada como área
de estudos, apesar de décadas de existência, no Brasil e na Europa,
comprovadas em livros e revistas especializadas. Permanecem
discussões e embates com os próprios pares, em meio a mal entendidos
sobre fins, locais, modalidades e recursos de atuação. Persistem
questionamentos de outros profissionais sobre a especificidade de seu
objeto de estudos, frente a: 1) diversidade de atividades sob essa
denominação, em publicações, na atuação dos que se denominam
psicopedagogos, em cursos de extensão, especialização e pós-graduação
lato sensu; 2) desempenho de funções de áreas com as quais apresenta
interfaces: Psicologia Educacional, Didática e Ensino, Psicoterapia,
Psicologia Institucional e Educação Especial.
Esses
embates assinalam a necessidade de precisão e clareza sobre o objeto
de estudos e a especificidade da Psicopedagogia, tornando-se
indispensável compor um quadro referencial de delimitação dessa área.
Apesar
das difusas demarcações, há concordância que a Psicopedagogia é a
área que lida com questões referentes ao processo de aprendizagem e
seus bloqueios. Ao adotar essa definição, os psicopedagogos assumem
um dos maiores desafios no contexto do Século XXI - cenário em que
vive o homem, tanto em países desenvolvidos como em países em
desenvolvimento.
Ovadia1
(Frédéric Ovadia - professor da equipe pedagógica do Institut
d'Administration des Entreprises de Nice) contribui para tornar mais
claro o significado desse desafio. Conforme assinala esse
pesquisador, a cada instante, o mundo se enriquece de paradigmas e
paradigmas... e o homem aí está em um mundo homogeneizado,
enfrentando enorme quantidade de informações, das quais participa
virtualmente e pelas quais compartilha angústias realmente. No
movimento entre o real e o virtual, o homem se debate, submerso a
cada dia mais em profusão de informações, distante das complexidades e
mistérios do que vivencia. Com a globalização do mundo e os novos
contextos sistêmicos fica, assim, condenado a uma aprendizagem
modelada por estratégias impostas e sem fundamentos... e... para
poder criar e recriar em um mundo permanentemente em mudança e
participar de forma mais livre, mais justa e, especialmente, mais
ética, há necessidade de chaves para incluir, para compreender, para
aprender, chave para abrir a porta de um caminho em que o homem
recobre sua maneira própria de sentir, pensar, agir em meio a tantas
informações...
Este
é o panorama para nossa reflexão em Psicopedagogia. Como enfrentar
essas questões para lidar com o ser humano neste cenário do século
XXI: como lidar com o seu aprender, que traz implícito o lidar com o
próprio aprender?
Serão
retomados alguns pontos de embates e de desafios que a
Psicopedagogia tem enfrentado e enfrenta, em um breve histórico desta
área desde seu surgimento. A partir daí, serão pontuadas algumas
questões referentes à formação do profissional em Psicopedagogia.
Histórico
A
Psicopedagogia, como área de estudos, surgiu da necessidade de
atendimento e orientação a crianças que apresentavam dificuldades
ligadas à sua educação, mais especificamente à sua aprendizagem, quer
cognitiva, quer de comportamento social. Procurava-se, assim, o
porquê ocorria essa problemática, avaliando e diagnosticando a
criança, física e psiquicamente. Envolvidos nessa busca, estavam
professores, psicólogos, médicos, fonoaudiólogos e psicomotricistas.
Nessa primeira etapa da história da Psicopedagogia, todo diagnóstico
recaia sobre a criança, o que significava que nela estava o problema,
sendo então encaminhada para atendimento especializado. Esse enfoque
de diagnóstico, prescrição e tratamento, envolvendo prognóstico,
trazia implícita uma concepção de que o fim da educação era de
adaptar o homem à sociedade. O Quadro 1 mostra essa tendência na Europa, nas décadas de 20 a 40, presentes ainda na década de 60. Mauco2,
diretor dos Centros Psicopedagógicos da Academia de Paris, em
publicação, esclarece que a denominação "psicopedagógico" foi
escolhida, em vez de "médico-pedagógico", porque os pais enviariam
com mais facilidade seus filhos a uma consulta psicopedagógica do que
a uma consulta médica. Os Centros contavam com equipes de médicos,
psicólogos, psicanalistas, pedagogos, reeducadores de
psicomotricidade, da escrita e grafia. O médico era responsável pelo
diagnóstico: realizado a partir de dados da investigação familiar,
condições de vida, atmosfera familiar, relações conjugais, métodos
educativos, resultados de testes de Q.I. - época em que os testes de
inteligência eram considerados de alta credibilidade. Após o
diagnóstico, o médico dava orientação para o tratamento, quer de
reeducação, quer de terapia. Nesse enfoque de trabalho, o diagnóstico
pedagógico visava esclarecer a inadaptação escolar e social e
corrigi-la. O título da publicação de Mauco sobre os Centros
Psicopedagógicos ilustra isso: "A inadaptação escolar e seus
remédios"2.
Na França, na década de 60, tiveram início as críticas a essa linha de trabalho dos Centros. Vasquez e Oury4
não aceitavam essa conceituação diagnóstica, bem como questionavam a
Educação e a Psicologia. Argumentavam que, sem considerar as
manifestações da criança em sua classe e outras situações na escola e
fora dela, corria-se o risco de estar apenas comparando-a com
padrões abstratos. Manonni5-7 reiterava essas críticas ao
afirmar que todos sabiam falar de diagnóstico e encaminhar para
reeducação, para adaptar a criança ao que a sociedade e a escola dela
esperavam, o que, segundo afirmava, não era educar, mas forçá-la a
submeter-se, docilmente, às instituições que reproduziam os valores
sociais, adestrando-a. Esses estudos aprofundados e pesquisados eram
documentados em publicações especializadas. O problema da pesquisa
em psicopedagogia foi analisado em artigo de periódicos especializado
por Henriot9, discutido sob diferentes ordens: 1) prática,
referente à especificidade da psicopedagogia de ter como objeto o
estudo do comportamento do aluno e as relações deste frente ao que
lhe era ensinado, diferenciando-a de outras áreas; 2) teórica,
referente às implicações da fundamentação teórica da pesquisa em
psicopedagogia; 3) subjacentes às duas anteriores, referente às
inter-relações entre psicólogos e pedagogos em psicopedagogia. O
Instituto de Pesquisa e Documentação Pedagógica de Paris publicou, em
1972, o debate "problema escolar x inadaptação-patologia": Nesse
debate, Heuyer8, um dos mais eminentes neuropsiquiatras
infantis na França, defendia o diagnóstico dos Centros; Bloch Laine,
designado pelo primeiro ministro francês, argumentava que não se
podia reduzir a questão do problema escolar à patologia da criança,
frente ao excessivo número de fracassos que a escola vinha
enfrentando. A questão do fracasso pôs em xeque a crença no
diagnóstico e contribuiu para que a Psicopedagogia entrasse em outra
fase.
No Brasil, como pode ser visto no Quadro 2,
as fases da Psicopedagogia assemelham-se às que ocorreram na Europa,
embora em décadas posteriores. Os primeiros registros de atividades
de uma psicopedagoga - Genni C. Moraes - dizem respeito ao
atendimento a alunos com dificuldades para aprender. A trajetória
dessa pioneira na área ilustra dados relatados por Rubinstein10,
sobre a história da Psicopedagogia no Brasil. Conforme esta autora,
as dificuldades para aprender eram atribuídas a uma inaptidão ou
distúrbio do aluno, o que o impedia de aprender como seus demais pares,
as causas ficando depositadas nele, principalmente. Os primeiros
psicopedagogos eram profissionais da educação, que queriam ajudar na
reintegração daqueles que estavam à margem. Assim, na própria prática
eram encontradas as técnicas que melhor atendessem à necessidade
do aprendiz para reeducá-lo de forma mais eficaz e específica.
Buscavam entender melhores as questões referentes às dificuldades,
estudando psicologia, neurologia e psicomotricidade. Para formar esses
profissionais, surgiram cursos de extensão de professores brasileiros
com experiência em atendimento a crianças com dificuldades escolares
e professores estrangeiros, principalmente da França e Argentina.
Na
década de 70, começaram os cursos de especialização, com
profissionais experientes na área de educação, de psicologia, de
aconselhamento escolar e em aprendizagem. Foram, concomitantemente,
desencadeadas várias pesquisas sobre aprendizagem e sobre alunos de
escolas públicas: Poppovic11-14, Ronca16, Masini17, Oliveira Neto18, Saad19, entre muitas outras.
A questão do fracasso, que pôs em xeque a crença no diagnóstico, teve início também no Brasil: Gatti et al.20; Collares24 retomou o tema, discutindo-o frente às questões de ordem orgânica versus social; Fonseca22 apontou o problema das responsabilidades para lidar com o fracasso escolar; Patto22
focalizou o fracasso escolar e o discurso que evidencia os padrões
estabelecidos. Esses autores são aqui citados para ilustrar a
tendência a enfocar os aspectos sociais, em vez de restringir-se aos
fatores intrapsíquicos, orgânicos e familiares. Surgia, dessa forma,
no Brasil, como em outros países, o que alguns denominavam tendência
de trabalho preventivo em Psicopedagogia.
Nas
décadas de 60 e de 70, na Europa, e de 80, no Brasil, aparece a
ênfase ao aspecto social ligado ao fracasso escolar. O Ministério de
Educação da França, no documento já citado, mostrou que mais de 50%
das crianças não faziam o primário no tempo estabelecido. Segundo
dados de 1999, do Instituto Nacional de Educação e Pesquisa (INEP/
MEC26), sobre a aprendizagem nas escolas públicas, o
porcentual de alunos que estão acima da idade correta é de 45,8%, na
1ª série do Ensino Fundamental, 69,2%, na 5ª série e 67,5%, no Ensino
Médio. Os dados de escolarização no Brasil, em 2001 (MEC), apontam a
seguinte porcentagem de alunos com idade acima do esperado no Ensino
Fundamental, em cada série: 1ª série - 25,3% ; 2ª série - 31,9%; 3ª
série - 38,0%; 4ª série - 39,4%; 5ª série - 50,0%; 6ª série -
45,0%; 7ª série - 45,5%; 8ª série - 45,7%. Essas porcentagens crescem
em cada série devido ao número de reprovações acumuladas, que, em
outras palavras, significa fracasso escolar.
Esses
dados corroboram com os questionamentos às "patologizações", como
gênese do fracasso escolar e os problemas de aprendizagem serem
investigados com enfoque exclusivo nos fatores individuais do aluno. O
ponto nevrálgico da questão passou a ser o papel da escola para
efetivo preparo da clientela que a freqüentava, analisando a
adequação da estrutura e funcionamento dessa instituição, do
currículo, e das condições de preparo do professor e de ensino aí
propiciadas. A escola passou a ser vista como uma das instituições de
uma comunidade ligada por uma trama de valores, hábitos, linguagem,
conceitos e padrões de comportamento. Ampliaram-se os temas e passaram
a ser pesquisados, também, os fatores intra-escolares e os de ordem
social, econômica e política envolvidos na aprendizagem. As pesquisas
desencadeadas a partir da década de 70 já assinalavam essa mudança
de enfoque.
É
importante esclarecer que não se está negando a existência de
distúrbios ou transtornos neurológicos desencadeadores de problemas
de aprendizagem. O aprendiz com esses problemas merece atenção e
requer específicos conhecimentos para seu atendimento
psicopedagógico. O que importa frisar é que estes casos constituem
pequena porcentagem dos fracassos na escola. Ciente disso, a
Psicopedagogia ampliou seu campo de atuação, deixou de focalizar o
problema para focalizar o aprendiz1 .
Embates
O Quadro 2
- Breve esboço da Psicopedagogia no Brasil - assinala a convivência
de trajetórias paralelas, isto é, o caminhar sem complementaridades
de pesquisas referentes à aprendizagem e de atividades de entidades e
profissionais da área da psicopedagogia.
Por
que isso tem ocorrido? Por que pesquisadores de renome nacional,
como Poppovic, cujas contribuições referentes a processos de
aprendizagem, que foram e são reconhecidas nos meios acadêmicos,
ficam no esquecimento e não são referenciados em livros, revistas e
sites especializados em psicopedagogia? Por que as pesquisas de dados
da realidade brasileira, ligadas à aprendizagem, realização escolar,
criança culturalmente marginalizada, escola e comunidade, formação
de professores e currículo, orientação cognitiva, ensino-aprendizagem
não são utilizadas ou referendadas pelos psicopedagogos? O que
significa essa trajetória paralela que o Quadro 2
mostra? Para nossa reflexão a esse respeito, retomamos as idéias de
Erney Camargo - presidente do CNPq, uma das mais renomadas instituições
responsáveis por pesquisas no território nacional. De acordo com
esse experiente pesquisador, é coletando dados do próprio contexto
social, organizando-os e sistematizando-os que as ciências sociais, em
cada comunidade científica, fortalece-se e sua contribuição passa a
ser reconhecida. Há, além disso, necessidade da comunidade
científica estar unida para um aperfeiçoamento do sistema de avaliação
de sua produtividade científica, participando ativamente e
conjuntamente. Essas idéias constituem sugestão para que sejam
analisados os problemas da pesquisa em psicopedagogia no Brasil, nos
seus vários aspectos, conforme o fez Henriot9,
anteriormente citado. Sem a devida atenção aos dados de investigações
da realidade nacional, estaria a Psicopedagogia do Brasil
dispersando-se em pesquisas e literatura importadas? Isso poderia
estar refletindo no reconhecimento da Psicopedagogia, no Brasil, como
área de estudos com seu próprio objeto de investigação?
Estudiosos
e pesquisadores, sem dúvida, precisam ter acesso à bibliografia
especializada e pesquisas realizadas em outros países, bem como ter
oportunidades de participar de cursos e encontros com autoridades de
outros países para o evoluir de uma área de conhecimento. Há, no
entanto, necessidade de cuidado e vigilância para não se perder de
vista o próprio referencial social, cultural, econômico, de valores,
de hábitos de linguagem. Referencial que assegura a identidade
cultural, individual e coletiva, do conhecimento. Comunicar-se,
preservando a própria língua, é um indicador do cuidado com a própria
identidade, como pessoa e como profissional. Nesse sentido, cabe
perguntar: Por que alguns psicopedagogos brasileiros adotam, sem
titubear, termos de língua estrangeira como ensinante e aprendente -
que não constam do Dicionário da Língua Portuguesa, do Brasil? Por
que essa adoção, quando existem, em Português, os termos aprendiz e
professor? A utilização de ensinante e aprendente, no atendimento
psicopedagógico, significa que é função do psicopedagogo ensinar? É
relevante esse esclarecimento, pois diz respeito à especificidade da
área de estudos.
O Quadro 2
evidencia, também, que a concepção de diagnóstico, no Brasil, sofreu
mudança, ultrapassando a dimensão estritamente individual para
ampliar-se com dados do contexto social. As publicações, já nos
títulos, revelavam esse redimensionamento, como mostram as
selecionadas a seguir. "A escola, a criança culturalmente marginalizada
e a comunidade", de Poppovic27; "O fracasso escolar como objeto de estudo: anotações sobre as características de um discurso", de Patto22; "Ajudando a desmistificar o fracasso escolar", de Collares24.
Essa transformação aparece, também, no trabalho de muitos
psicopedagogos, da década de 80 até o presente ano 2006, conforme
ilustram as obras de Fagali28, Scoz29, Weiss30, Maluf31,
dentre muitas outras. Para avaliar se essas transformações têm-se
estendido, de um modo geral, à atuação dos psicopedagogos e aos
cursos de formação desses profissionais, caberia uma pesquisa
cuidadosa, envolvendo análise de publicações especializadas, de
relatos de experiências em eventos e de currículos e programas de
cursos de psicopedagogia.
Um
ponto de sutileza, e que requer análise cuidadosa de todos que lutam
por definir o objeto de estudos da psicopedagogia e sua delimitação,
é refletir se a ação de um psicopedagogo pode legitimar as
impropriedades do ensino. Sua atuação corre o risco de constituir
recurso remediador para o baixo rendimento escolar? Quando o aluno é
encaminhado ao psicopedagogo para diagnóstico e tratamento para
recuperar-se, ao realizar o atendimento sem analisar métodos e
programas da escola para o processo de aprendizagem, o psicopedagogo
estará reiterando a posição da escola de que o problema é do
aprendiz?
Se o psicopedagogo aceita assumir a função remediadora, está compactuando com as impropriedades da escola?
Se
o psicopedagogo não aceita assumir a função remediadora,
considerando que estaria compactuando com as impropriedades do
ensino, resta a pergunta: Em que situações caberia à Psicopedagogia
oferecer recursos para o processo de aprendizagem e seus eventuais
bloqueios?
Essas
perguntas e impasses dizem respeito à definição e ao significado
da Psicopedagogia e trazem implícitas questões indispensáveis para
compor um quadro referencial de delimitação e de avaliação desta
área. Delimitação e avaliação prementes, cujas lacunas têm
desencadeado embates entre profissionais da psicopedagogia e de áreas
afins.
Espera-se
que estas perguntas e questionamentos sugiram reflexões e possam
contribuir para a identidade da Psicopedagogia como área de estudos
com seu próprio objeto de investigação.
Desafios
A partir do que ficou exposto, pode-se esboçar os desafios com que se defronta a Psicopedagogia.
Em
primeiro lugar, está a definição da Psicopedagogia, fator de embates
com profissionais da própria área e com os de outras áreas.
Uma
sugestão para a busca de resposta a essa questão seria a análise de
pesquisas e registros de trabalhos psicopedagógicos desenvolvidos,
identificando: 1) a prática e a especificidade das atividades,
diferenciando-as das de outras áreas; 2) a adequação da fundamentação
teórica à prática e/ou à metodologia da pesquisa em
psicopedagogia; 3) o subjacente aos itens 1 e 2 - as inter-relações
entre psicopedagogos e outros profissionais afins e os mal entendidos no
que diz respeito à pertença dessa área de estudos.
Em
seguida, está o desafio da Psicopedagogia frente ao cenário do homem
no século XXI. Definindo-se a Psicopedagogia como a área que estuda a
aprendizagem, é necessário, em primeiro lugar, ter claro o sentido
atribuído à aprendizagem para assegurar consistência ao campo de
estudos e especificidades da psicopedagogia.
Nesta
comunicação, aprendizagem é concebida como o processo responsável
pelas transformações que acompanham o ser humano do seu nascimento à
sua morte, transformações que emergem das inter-relações sociais e
interações ambientais no contexto de vida do indivíduo e são
constituídas pelas aquisições de habilidades, raciocínios, atitudes,
valores, vontades, interesses, aspirações, integração,
participação e realização.
A
Psicopedagogia tem algo a dizer para assegurar que essa aprendizagem
ocorra? Teria algo a contribuir para conservar vivos no ser humano
(adulto, jovem ou criança), neste cenário do século XXI, seus
interesses, aspirações, integração, participação e realização?
Teria sugestões que apontassem alguma perspectiva à problemática
evidenciada, também, em temas das publicações da época atual, como:
"Violência na escola: um desafio mundial?", de Debarbieux32; "A inflação escolar - as desilusões da meritocracia", de Bellat33; "A dificuldade de ensinar", de Salomé34; "A mídia e seus truques", de Hernandes35.
Essa
literatura sobre educação retrata a perplexidade de especialistas e a
necessidade de encontrar diretrizes para lidar com problemas comuns
como: a inflação escolar, violência na escola e as dificuldades de
ensinar; e de definir o que é a escola; dificuldades da submersão em
imensa quantidade de informações, sobretudo informações e
manipuladas.
Há, na Psicopedagogia, interesse, disponibilidade e conhecimentos específicos para lidar com essas questões?
No
contexto da realidade educacional brasileira, Araújo (2002) afirma,
em entrevista, que embora o Estado tenha investido bastante em
programas de capacitação nos últimos vinte anos, não há um retorno
significativo em termos da aprendizagem. O Brasil, em 2001, entre 32
países avaliados, ficou em último lugar no Programa Internacional de
Avaliação de Alunos (Pisa), cuja ênfase era a compreensão de textos.
De acordo com o autor, o país acabara de ganhar um tremendo
certificado internacional de mau aluno - o aluno leu e não entendeu.
Em outras palavras, não conseguiu elaborar a informação.
Essa problemática diz respeito à Psicopedagogia?
Acrescente-se à problemática da aprendizagem nas escolas públicas, já referida (INEP/ MEC26)
sobre os alunos que estão acima da idade correta no Ensino
Fundamental, a explosão da demanda por Ensino Médio pelo retorno ao
sistema da população que procura elevar sua escolaridade ante às
novas demandas do mercado de trabalho.
Esta é uma problemática que diz respeito à Psicopedagogia? Em que situações caberia à Psicopedagogia contribuir?
Essas
perguntas poderão ser vistas como pontos auxiliares para uma
reflexão da comunidade científica da psicopedagogia sobre seu objeto
de estudos e seus reais desafios. Por outro lado, poderá constituir
um exercício para que se resgate das atividades já realizadas em
Psicopedagogia aquelas que ofereçam diretrizes ou sugestões para
encaminhamento a essas questões.
Para
ilustrar esse exercício de resgate será exposto um episódio que teve
lugar em 2002, no III Ciclo de Estudos de Psicopedagogia Mackenzie,
cujo objetivo foi evidenciar que as possibilidades humanas
desabrocham, e o aprender ocorre desde que se propiciem relações,
recursos e ambientes apropriados36.
Para
alcançar esse objetivo, várias professoras da equipe de
psicopedagogia realizaram um debate sobre a experiência comunitária
de arte/educação, denominada Meninos do Morumbi. Foram apresentados a
proposta e o relato do desenvolvimento dessa experiência, juntamente
com a exibição de um vídeo e uma palestra da coordenadora desse
Projeto, a psicóloga Lígia Pimenta. Pôde-se acompanhar as
manifestações de auto-descoberta e realização de jovens, em suas
ações, no ambiente físico e social em que viviam. Os debates
evidenciaram as situações de ocorrência de aprendizagem enraizadas em
seres humanos que vivenciaram essa experiência educacional: meninos
de rua que se transformaram em componentes de uma banda conhecida
nacionalmente e internacionalmente. Ficou ilustrado que as
possibilidades humanas desabrocham e o aprender ocorre, quando são
propiciadas relações, recursos e ambientes apropriados; quando há
disponibilidade e atitude de abertura e cooperação das pessoas
envolvidas, no caso dos Meninos do Morumbi, os profissionais de
diferentes áreas, os meninos e jovens de rua co-participando das
atividades desenvolvidas.
O
foco nas condições para aprender de pessoas em ação no seu contexto
de vida deslocou o estudo esquematizado e abstrato da aprendizagem,
para o sujeito do conhecimento na complexidade das inter-relações
corporais, afetivas e cognitivas individuais, coletivas e sociais.
Os
meninos de rua que ali estavam sem nada fazer, transformaram-se.
Desenvolveram habilidades para tocar instrumentos musicais,
raciocínios para acompanhar o que a escola pública ensinava, atitudes
de responsabilidade junto à banda, prazer pela cultura e arte,
ampliaram valores como o de participar e integrar-se no grupo Meninos
do Morumbi, vontade, interesses, aspirações de ir mais além do que
tocar na banda, no próprio bairro. O aprender dos meninos ocorreu no
empenho e contato com cada coisa do seu viver, do dia-a-dia.
Essa
experiência constituiu, para a equipe de professores da
Psicopedagogia Mackenzie, um aprendizado profundo sobre o aprender. O
exercício de resgate dessa experiência, do III Ciclo de Estudos de
Psicopedagogia Mackenzie, propiciou revalorização da atividade de
psicopedagogia realizada e retomada de diretrizes e sugestões para
outras situações. O que foi relatado desse resgate pode ser pensado
como contraponto para o desafio da aprendizagem do homem no cenário
do século XXI.
Os
embates, desafios sugestões e contrapontos expostos constituirão
referencial para as considerações a serem feitas no próximo item.
Formação do Profissional em Psicopedagogia
Os
embates e desafios da Psicopedagogia, evidentemente, estão presentes
em qualquer consideração sobre a formação do profissional nessa
área. Assim sendo, serão retomados, aqui, apenas alguns princípios
gerais a serem pensados, levando em consideração os embates e os
desafios apontados.
Tendo
como referência o cenário do século XXI, é pertinente que a
Psicopedagogia tenha como linha diretriz, ao lidar com o processo de
aprendizagem, o desenvolvimento harmonioso do aprendiz e da
consciência do significado de sua ação no contexto onde age. A busca
da consciência do que realiza na situação de aprendizagem e o
significado do que e porque o faz pode constituir um possível caminho
para salvaguardar que o aprendiz (adulto, criança ou jovem) não se
perca em um fazer automático e sem sentido de vida.
A partir do exposto, são sugeridos alguns princípios gerais para essa formação.
Na
seleção de candidatos para um curso de Psicopedagogia, seria
interessante ter entre os critérios, além dos referentes à
escolarização e aos conhecimentos, outros que contemplassem interesse
pelo processo de aprender e pelo trabalho junto aos envolvidos nesse
processo (educadores e aprendiz), bem como condições de
personalidade que não apresentassem graves problemas.
Conviria
que os cursos fossem em nível de pós-graduação, pois só um
conhecimento amplo de Educação e Psicologia, fundamentado em uma
visão crítica da realidade social e da investigação científica,
propiciaria ao psicopedagogo segurança para decidir sobre sua ação,
bem como posicionar-se e justificar suas diretrizes de trabalho
diante de outros profissionais que lidam com o aprendiz.
Os
cursos precisam ter um direcionamento teórico-prático, por várias
razões: 1) para o psicopedagogo vivenciar situações para lidar com o
próprio aprender e para lidar com o aprender do outro; 2) para o
psicopedagogo desenvolver, com propriedade, o uso de recursos
específicos, quer para assessorar professores ou outros profissionais
em situações específicas de aprendizagem, quer para o atendimento do
aprendiz; 3) para o psicopedagogo saber, de forma cientificamente
fundamentada, o porque utilizar um ou outro recurso para o aluno com
quem está lidando. Por essa razão, os cursos necessitam ter um
currículo composto de aulas teóricas e estágios supervisionados, que
constituam um espaço de discussão e reflexão teórica sobre a prática.
Frente
a esses princípios gerais, seria prioritário que a formação do
psicopedagogo propiciasse formas de: 1) ampliar sua percepção e a
acuidade às manifestações do ser humano em situação de aprendizagem,
considerando as relações que facilitam ou limitam seu ato de
aprender; 2) assegurar sua atenção à totalidade do sujeito na
situação do ato de aprender, considerando-o no seu contexto, em sua
afetividade, valores, hábitos e linguagem; 3) garantir a aquisição de
conhecimentos sobre o desenvolvimento do ser humano, teorias de
aprendizagem, relações com o outro; 4) desenvolver visão crítica
sobre as teorias que embasam sua ação em relação ao contexto no qual
atua profissionalmente e sobre a utilização dos recursos propostos
(instrumentos e técnicas), para o desenvolvimento global do aprendiz,
considerando-o em seu meio social específico e em seu momento
histórico; 5) incutir o cuidado em analisar quando os recursos
científicos e tecnológicos da atualidade estariam distanciando o
aprendiz de si próprio e de seus significados.
Síntese
Frente ao cenário do século XXI, é indispensável a Psicopedagogia caracterizar-se como a área que:
- estuda as relações envolvidas em situações do aprender, para nelas resgatar o que emerge da vida de crianças, jovens e adultos - de suas impressões, sentimentos, dúvidas valores, elaborações;
- cuida para não perder o que sucede, ao buscar os significados de situações do aprender para os que dela participam e assim contribuir para que cada um amplie e aprofunde seus próprios significados;
- esforça-se para não enfeitar nem mascarar os encontros e desencontros do sujeito consigo mesmo, com o outro e com o próprio contexto social, dissimulando fealdades e tornando inexpressivas as situações.
REFERÊNCIAS
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Correspondência:
Dra. Elcie Masini
Rua dos Franceses, 498 - Bloco F - apto 142
São Paulo - SP
Tel.: (11) 3287-8765
E-mail: delcie@uol.com.br
Dra. Elcie Masini
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E-mail: delcie@uol.com.br
Fonte: http://pepsic.bvsalud.org/
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